Uncategorized

Fotografia: entre o manual e o automático

Como escreve Edmond Couchot[i], “a evolução das técnicas de figuração indica, desde o Quattrocento, a consta?ncia de uma pesquisa quase obsessiva que visa automatizar cada vez mais os processos de criação e reprodução da imagem”. De fato, percebe-se na construção dos processos históricos de replicação de imagens uma busca constante por um maior automatismo. A câmera fotográfica, no caso, coloca-se como um dispositivo que surge e se desenvolve a partir desse objetivo. Uma intensificação do automatismo, portanto, é evidente.

Mesmo que de forma um tanto redutora, podemos pensar em alguns “dispositivos” principais que demonstram essa progressão do automatismo na fotografia: câmara escura, consolidando estudos iniciais para produção de imagens e que, no futuro, viria a dar base ao desenvolvimento da fotografia; daguerreótipo, com seus processos abertos e altamente dependentes de um humano manipulador dos diversos itens de laboratório; câmera Kodak, representando de fato o primeiro dispositivo fotográfico fechado e de uso simples; e o smartphone, dispositivo híbrido que se tornou a principal câmera fotográfica da atualidade. Essa simples progressão do aprimoramento técnico e do uso da fotografia evidencia, primeiramente, tanto um crescente automatismo nos processos fotográficos quanto uma crescente simplificação do aparelho. No entanto, surgem também outras duas questões: a transformação da fotografia em uma “mídia de comunicação instantânea”[ii] e – um pouco menos evidente – a possibilidade de “contra-automatismo” a partir de apropriações do aparelho. Discutiremos brevemente alguns desses pontos.

A partir do automatismo, percebem-se muitos elementos agindo como um só. É o caso da câmera Kodak criada por George Eastman. Nela, todo o aparato de laboratório necessário no daguerreótipo é simplificado em uma pequena caixa de madeira. E, pensando-se em termos de Teoria Ator-Rede (TAR), trata-se de um movimento de “encaixapretamento”, transformando o processo de produção de imagem em uma caixa-preta – termo utilizado por Bruno Latour na TAR. Diversas mediações presentes nesse processo são estabilizadas, possibilitando – via automatismo e encaixapretamento – um uso mais simples e rápido do aparelho fotográfico. Aliás, é a primeira vez que se tem, de fato, um dispositivo de fotografia.

Dessa forma, as redes em torno da produção fotográfica tornam-se mais complexas – cria-se um processo industrial para sustentá-las, por exemplo – ao mesmo tempo em que, em consequência, o uso do dispositivo torna-se mais simples, impulsionando a fotografia amadora. Afinal, como o própria empresa de Eastman dizia: “Você aperta o botão, nós fazemos o resto”.

 You_press_the_button,_we_do_the_rest_(Kodak)

Essa busca por maior automatismo e simplificação do aparelho culmina atualmente com o uso do smartphone. A “caixa preta de fotografia”, agora, está embutida em um outro dispositivo: híbrido, digital e com diversos tipos de conexão. A fotografia, assim, passa a ser uma mídia de comunicação, cada vez mais instantânea, de fácil utilização e rápido compartilhamento. Não basta produzir a foto no mesmo instante do “clique”; é necessário, além disso, possibilitar um compartilhamento imediato. Ou seja, fazer fotografia significa também compartilhá-la. Como pensa André Gunthert[iii], atualmente “o verdadeiro valor de uma imagem é de ser compartilhada”. O próprio dispositivo se encarrega de diversas etapas que, antes, estavam espalhadas por diversos outros mediadores. Mesmo com a câmera Kodak, por exemplo, a fotografia só era visualizada após a passagem por muitas etapas industriais e de logística empresarial. Agora, há uma ampliação ainda maior do automatismo, fazendo com que todo o processo de produção da fotografia seja amplamente dominado por mediadores não-humanos, englobados no dispositivo chamado smartphone.

Por outro lado, um ponto importante nessa questão é a possibilidade de realocação do “manipulador-fotógrafo” e de apropriações decorrentes do próprio automatismo. Livre de diversas funções – em alguns casos, até do próprio “clique” –, o fotógrafo se desloca aos poucos para uma posição de manipulador de uma imagem já produzida, ao invés de se colocar como um simples impulsionador do processo. É justamente essa liberação do fotógrafo, transformando-o muito mais em um manipulador da imagem, que possibilita apropriações e transformações do próprio automatismo.

Parece paradoxal, mas não é. O hábito – e aqui tomo emprestado o termo no sentido de “modo de existência do hábito” trabalhado por Latour[iv] – e sua relação com a técnica – novamente, modo de existência da técnica –, se pensado em termos do desenvolvimento da fotografia, engendra um automatismo capaz de trazer uma aparente continuidade da ação, um forte encaixapretamento do aparelho fotográfico. Por outro lado, o próprio desenvolvimento tecnológico depende de rupturas, de quebras, aberturas de caixas-pretas que proporcionam novas descobertas e possibilidades de uso da técnica. Sendo assim, por mais automático que seja um sistema, surgem possibilidades de “volta ao manual” (também um termo utilizado por Latour) em meio ao automatismo proporcionado pela relação entre o hábito e a técnica.

No caso do smartphone, essa “volta ao manual” é proporcionada pela liberação do fotógrafo devido ao automatismo do aparelho e das possibilidades que surgem de uso e apropriações desse automatismo. São exemplos fáceis de se perceber na experiência cotidiana de fotografia via aparelho celular.

A prática do selfie é um deles. Os aparelhos, antes, não eram projetados com duas lentes, uma frontal e outra traseira. Essa transformação se deve justamente à prática comum à fotografia digital amadora de fazer autoretratos segurando a própria câmera. Dessa forma, os smartphones passaram a facilitar tal prática ao incorporar essas duas lentes. Outro exemplo é a possibilidade de usar tipos diferentes de lentes acopladas ao celular, de forma a trazer itens externos não pensados inicialmente para a fotografia via smartphone. Essas possibilidades surgem desde gambiarras para modificar a lente fixa do aparelho até conjunto de pequenas lentes – fisheye, wide, tele, por exemplo – que podem ser compradas e acopladas à frente do celular. Ou, ainda, pode-se encontrar exemplos de uma “volta ao manual” mais literal, como propõe o aplicativo “Manual” para iOS. Nele, é possível pela primeira vez controlar de forma “manual” algumas configurações da câmera do celular que são, por padrão, automatizadas via software: modificar o ISO, velocidade do obturador, balanço de branco e foco.

cell-phone-lenses-2738_600.0000001385428633
Photojojo iPhone and Android Lens Series

Outra questão interessante de apropriação do automatismo e de uma “volta ao manual” está na etapa posterior à produção da foto em si. Como o aparelho se encarrega de produzir e processar a imagem, gerando-a instantaneamente, ao manipulador-fotógrafo abrem-se possibilidades de retrabalhar e modificar essa imagem posteriormente. É comum, por exemplo, o uso de vários aplicativos dentro do smartphone para modificar características das fotos, desde filtros prontos até exposição, contraste, cores etc. Sendo assim, a foto é produzida pelo próprio aparelho de forma instantânea, mas, se assim desejar, o manipulador-fotógrafo pode retrabalhá-la e reprocessá-la quantas vezes e da forma que quiser antes de compartilhá-la, atento a diversos detalhes, trabalhando quase que de forma manual.

Enquanto o daguerreotipista trabalhava manualmente, como um artífice[v], em um processo laboratorial de mediações abertas para produzir uma imagem, o fotógrafo no smartphone, também como um artífice, volta ao manual e traz novas apropriações através da própria configuração altamente automatizada do aparelho. São processos de volta ao manual que, de certa forma, são impulsionados e reconfiguram o próprio automatismo do dispositivo fotográfico.

[i] COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. In: PARENTE, André. Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 37-48.

[ii] RIVIÈRE, Carole Anne. Téléphone mobile et photographie: les formes des sociabilités visuelles au quotidian, in Sociétés, no 91. Bruxelas: De Boeck, 2006, p.119-134.

[iii] GUNTHERT, Andreé. L’image partagée: comment internet a changé l’économie des images. Études photographiques, v. 24, nov. 2009. Acesso em: 7 maio 2013.

[iv] LATOUR, Bruno. Enquête sur les modes d’existence: une anthropologie des Modernes. Paris: Éditions La Découverte, 2012b.

[v] SENNETT, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012.