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Cidades Inteligentes: Lugar, Territorialização Informacional e Inteligência.

Por André Lemos

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Partes deste texto foram tirados da conferência realizada em setembro de 2014 no Programa de Gestão e Urbanismo da PUC-PR

Introdução

As dinâmicas das cidades são hoje marcadas pelas redes telemáticas, os bancos de dados, os aplicativos para tecnologias móveis. Usuários e gestores urbanos utilizam largamente estas tecnologias. As cidade contemporâneas são agora cidades de carne, pedra e algoritmos. Pensar o urbano deve levar em conta as novas mediações em jogo com os atuais projetos de cidades inteligentes e as suas novas tecnologias correlatas como a “Internet das Coisas” e a “ciência dos dados” ou o Big Data.

Cidades algoritmos

A cidade é um arranjo de localidades, locais e lugares. O espaço é um resultado, sempre enredado destas dimensões. Os locais se formam por processos de territorialização e desterritorialização. Alguns deles viram lugares, outros não. A dinâmica das cidades no atual desenvolvimento da cultura digital vê emergir uma nova (des)territorialização: a informacional. Esta leva a novos sentidos de localidade, local e lugar, a um rearranjo do “espaço urbano”.

Os projetos de “cidades inteligentes” levam esta (de)territorialização informacional para um terreno tecno-ideológico, tanto por parte de políticos, gestores, urbanistas, bem como os usuários. Os que se lançam nesta experiência, acreditam que a inteligência é algo a ser conquistada, uma dimensão potencial (virtual) já que colocada em um tempo futuro e condicional (“se”, “podemos”, “seria”) e um espaço genérico, a ser construído. A tecnologia digital é vista como promessa (virtual) que poderá resolver as mazelas da modernização, tornando as cidades mais eficientes, práticas, racionais, ecologicamente sustentadas.

Este sonho começa nos alicerces da sociedade da informação no século XVIII. Sabemos que o hoje está sempre atrelado ao ontem! O sonho tecnológico de cidades inteligentes vem desde muito longe, desde Utopia ou a distópica Metrópolis ou a cidade de Balde Runner. Automatismo e tecnologia são sempre tomados como princípios de eficácia racional já que seria de neutralidade política, de eficiência e de desburocratização. Precisamos buscar premissas para entender o que significa “inteligência” para uma cidade e seus cidadãos. Para isso, precisamos politizar os novos objetos e os lugares informacionais

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Localização, local, lugar e território

O lugar é o local preenchido de sentido (identitário, histórico, politico, cultural) individual ou coletivo. Pode ser o “meu lugar” ou o “lugar de manifestação de determinado coletivo” (protestos, festas, etc.). Portanto, neste sentido, nem todo local é um lugar. O lugar é uma dimensão do local, não um propriedade ontológica, assim como a cor não é uma propriedade ontológica da matéria. Nós atribuímos uma cor a partir do nosso aparato cognitivo, assim como atribuímos sentido de pertencimento a um local a partir da nossa experiência particular (individual ou coletiva), transformando-o em lugar.

O território é um local delimitado por controles precisos, dinâmicas de “(des)(re)territorialização”. Este processo constitui os locais (por isso ele “existe e não nada”) que podem vir a se tornar lugares. Os processos de (des)(re)territorializações são fundamentais para a constituição de um local (e por consequência a dimensão de lugar também), já que ele é uma resultante desses processos. O local é assim um ponto em uma rede de “eventos” que o constitui e que são por eles constituídos (espacialização) formado dimensões diversas: técnicas, sociais, imaginárias, comunicacionais, geopolíticas etc. Este conjunto de eventos eu chamo de “espaço”.

O espaço se cria na dinâmica entre locais (sendo ou não lugares), uma rede que existe se deformando pelas tensões entre os locais (e os demais objetos). Vocês, gestores urbanos e arquitetos sabem muito bem disso. Faça um prédio, uma praça, um shopping, uma escola, um hospital, um monumento em determinada porção do espaço e veremos o espaço se deformar com novos serviços, fluxo de carros e de pessoas, novas necessidades de energia, saneamento, novos problemas ambientais, sociais, policiais… A vida que emerge das associações constituindo o espaço e o tempo.

Sintetizando, podemos dizer que:

1. Espaço (ou localidade) – rede que se deforma e se conforma na relação entre os locais (força/tensão entre e nos locais). Pode ser o espaço do globo (dinâmica de todas as localidades) ou um espaço mais restrito (o bairro, a cidade, o estado…)

2. Local – formado por processos territorializantes e desterritorializantes tendo uma localização (o endereço a indicação precisa de latitude, longitude e altura) precisa (a padaria, o mercado, o lago, a praça, o obelisco)

3. Lugar – locais preenchidos de sentido, de carga identitária (emocional, histórica, política, econômica…), podendo ser individual (o meu lugar) ou coletivo (os lugares dos curitibanos protestarem, festejarem etc.)

(Des)(re)Territorialização – Processos de (des)(re) controle (múltiplos como leis, formas de acesso, hábitos, normas, regras…) que constituem todo e qualquer local.

Territorialização informacional

A hipótese que trago é que com a cultura digital novos processos de controle emergem e que são controles de acesso a redes telemáticas. Este novo processo de territorialização modifica os locais e, por consequência, as suas formas de uso e de pertencimento. Vou a esta praça (restaurante, café) por ter acesso Wi-Fi livre, evito esta parte do meu local de trabalho pois meu celular não pega bem lá, vou me hospedar neste hotel por me dar um bom acesso à internet sem cobrar uma taxa por isso, me dirijo a determinada localidade de carro pois tenho acesso ao GPS por conexão 3G… Os exemplos são inúmeros. Este tipo de controle de acesso às redes telemáticas eu chamo de “territorialização informacional”, e a há inúmeras formas de visualizá-la.

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Processos territorializantes entram em associação (tensão, sinergia, destruição, potencialização). Por exemplo, o uso de uma praça coloca em movimento processos (des) territorializantes diversos: as leis locais, os hábitos dos usuários, as gangues que traficam drogas a noite, o controle da iluminação, as câmeras de vigilância, e, se for o caso, as redes Wi-Fi e 3G disponíveis.

Portanto, aparecem as TIC como elementos introduzidos no local aportando novos processos (des)(re)territorializante (acesso gratuito ou pago, uso da praça para acessar ou passear, transformação dos hábitos, constituição do “meu lugar” pelo uso frequente do Wi-Fi para estudar ou trabalhar…). Temos que compreender melhor a territorialização informacional na constituição dos locais, dos lugares e, consequentemente, do espaço: processos sociais e comunicacionais, praticas e conceitos da gestão urbana.

O que apontam diversos estudos é que os locais, as localidades e os lugares mudam como o surgimento das TIC. Na comunicação, sabemos desde sempre que toda mídia produz espacialização. Foi assim desde a escrita (deslocamento emissor – enunciado), passando pelo jornalismo (que cria o espaço público e a opinião pública), o telégrafo (junto com as vias férreas possibilitaram a expansão da distância entre moradia e trabalho), o telefone (que viabilizou a construção dos arranha-céus e dos subúrbios), o rádio, a fotografia, o cinema e, principalmente, a TV (nos dando, pela primeira, vez uma sensação compartilhada globalmente de uma mundialização, de um espaço e tempo globais).

Hoje vivemos o ápice desse processo histórico de conformação do espaço pelas práticas infocomunicacionais humanas. Com as mídias digitais, os computadores e as redes telemáticas, diferentemente do que previram os mais apressados, não foi constituído um “mundo a parte”, virtual, mas é o bom e velho mundo que passa a ser reconfigurado por camadas infocomunicacionais.

As TIC, ao alterarem as dinâmicas das localidades (por criar novos locais e por alterar antigos locais que poderão vir a tornarem-se lugares – dimensão potencial ou virtual do conceito de lugar) deformam o espaço (rede) e passam mesmo a inventá-lo junto com outros processos (des)(re)territorializantes. O espaço (ou localidade) é inventado pela dimensão dos locais – sempre foi assim. Agora temos mais um fator importante de tensão nos locais e entre eles: a territorialização informacional. Devemos, nós das ciências de comunicação e vocês da gestão urbana e da arquitetura, entender e potencializar o melhor uso desse processo de territorialização informacional.

Hoje, em plena cultura digital, a territorialização informacional é um elemento utilizado no processo de transformação de locais em lugares já que eles são elemento que instituem atração e viscosidade (o que nos atrai e mantêm nos locais). Notemos que a tensão contrária também é real. Alguns locais têm hoje, nas metrópoles contemporâneas, utilizado estes processos de (des)(re)territorialização informacional para construir um lugar. Mas, de forma contrária, locais vão também usar a estratégia de negar esta territorialização informacional para se diferenciarem e constituírem, também, as suas condições : um café que proíbe o WiFi para ser um lugar para apenas tomar café e conversar, por exemplo.

Mesmo nesse caso, o argumento principal se mantém, a saber: locais são pontualizações constituídos por processos de controle e descontrole (territorialização e desterritorialização) e as TIC acrescentam mais um processo, a (des) territorialização informacional. Alterando os locais, muda-se as localidades, ou seja, o espaço. 

Cidade inteligente

A questão das cidades e dos cidadãos inteligentes já foi tratada em outro texto. Mas podemos retomar aqui a definição e dizer smart cities refere-se projetos em cidades (existente ou a serem construídas) de implementação e aperfeiçoamento de processos informatizados sensíveis ao contexto, produzindo e lidando com um gigantesco volume de dados (Big Data), redes em “nuvens” e comunicação autônoma entre diversos objetos (Internet das Coisas). “Inteligente” é sinônimo de uma cidade na qual tudo é sensível informacionalmente ao ambiente e produz, consome e distribui um grande número de informações digitais em tempo real fazendo com que atores humanos e não-humanos tomem decisões, produzam ações sobre outros e modifique o seu próprio comportamento.

A cidade passa a ser um organismo informacional que reage e atualiza todos sobre suas condições a qualquer hora. Quanto mais inteligência “embarcada” nos locais, mais inteligente será o uso das TIC. Smart cities serão, na minha opinião, cidades que saberão aproveitar a sua inteligência já existente (histórica, política, sensível, cultural) para tirar proveito (ou rejeitar) as formas eficientes de tratamento automatizado da informação digital. Cidades inteligentes serão aquelas nas quais as TIC são elementos estimulantes à transformação de locais em lugares, ou seja, à produção de sentido do espaço (contra o que é genérico ou meramente econômico, automatizado, racionalizado…).

Cidades são inteligentes à sua maneira. Temos que valorizar essa inteligência. É bem diferente o processo no Rio, Amsterdã, Barcelona ou em Masdar, Songdo ou PlanIt (onde não há sequer vida). Nas primeiras, há o “algoritmo” construído ao longo dos anos pela história, pela identidade, pelos hábitos, pela cultura. Sabemos, quando chegamos a esta cidades, que há algo nelas que lhes é próprio (do Rio, de Amsterdã ou Barcelona). Nas outras, o algoritmo como software processado em computadores vão mediar e criara uma nova cultura, do nada. Aqui a cidade surge “from scratch” e sua inteligência deve ser “iniciada”.

Retomando o argumento central deste texto, podemos dizer que o que importa é criar “lugares”, proporcionar formas de produção de sentido nos locais e nas localidades pela territorialização informacional. Mas nada está garantido se não houver vida inteligente. Uma cidade em que tudo funciona bem, mas não há sentido sendo produzido por apropriações e desvios, onde não podemos construir nela “o nosso lugar”, não poderá jamais ser chamada de “inteligente”.

Referências

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LATOUR, B. (2005a). Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford University Press. Ver tradução brasileira Reagregando o Social. Introdução a Teoria do Ator-Rede., EDUFBA/EDUC, 2012.
LEMOS, A. (2013). A Comunicação das Coisas. Teoria Ator-Rede e Cibercultura. Annablume:São Paulo.
LEMOS, A. (2013). Cidades Inteligentes., in GV Executivo., volume 12, número 2., julho/dezembro. São Paulo: FGV-EAESP., pp. 46-49., ISSN – 1806-8979
SENNETT, R. (2009). O Artífice., Record: Rio de Janeiro.