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Os Desafios Atuais da Cibercultura

Texto publicado originalmente no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo (15/06/19)

Por: André Lemos 

Plataformização, Dataficação e Performatividade Algorítmica (PDPA) são as novidades da sociedade contemporânea, e esse tripé coloca em xeque as ideias de emancipação, liberdade e conhecimento que deram origem à cibercultura. Sempre houve controle, software e algoritmos (é o que caracteriza o digital), mas eles não atuavam de forma ampla e integrada, como um demônio no meio dos sistemas, chupando dados e induzindo ações sobre o que se deve conhecer, fazer, comprar, com quem se relacionar, ou quais lugares e comidas conhecer. A sociedade é hoje refém de plataformas digitais, da lógica da dataficação (como uma modulação da vida pessoal por dados) e da ação opaca e silenciosa dos algoritmos. A PDPA é regida pelos Big Five – Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft (GAFAM) – que dominam grande parte da internet.

É isso que caracteriza a atual fase do “capitalismo de vigilância” (Zuboff), ou capitalismo de dados, criando modelos de inclusão e exclusão, ciclos de antecipação produzindo o que é relevante com promessas de eficiência e customização, entrelaçando práticas, produzindo públicos, suas opiniões e demandas. A cultura digital é hoje um amplo sistema de governança algocrático agenciando, pela PDPA, a forma pela qual a sociedade como um todo se transforma. Por algocracia (Danaher) compreende- se a tomada de decisões pela performance dos algoritmos através da ampla dataficação (Mayer-Schönberger e Cukier) e plataformização da sociedade (van Dijck, Poell e de Wall).

Há evidências de retrocessos local e mundial da liberdade, da inovação e da criatividade justamente pela ação da PDPA: bolhas nas redes sociais; fake news (ações intencionais criadas para atingir grupos ou pessoas, tendo como motor a lógica da performatividade algorítmica das redes sociais, indo muito além do boato, ou do erro jornalístico); amplo domínio do rastreamento, coleta e processamento da vida social na forma de dados operacionalizáveis para fins diversos (comerciais, políticos, governamentais); surgimento de interfaces que são passagens obrigatórias na vida quotidiana, as plataformas digitais – conjunto de hardware e software formando uma estrutura de serviços e produtos que operacionalizam a monetização pela dataficação; precarização global do trabalho (“uberização”). Para se ter uma ideia da “plataformização da sociedade” basta olhar para um smartphone e as ações diárias por ele geradas.

A cultura digital tem sua origem na apropriação social da informática na segunda metade dos anos 1970. A criação de uma rede digital aberta, plural e democrática foi resultado da ação de visionários que defendiam a liberdade, a inovação e a criatividade. A internet é, certamente, a mais importante infraestrutura de comunicação jamais criada pelo homem, uma rede mundial descentralizada que ampliou de forma inédita a democratização do conhecimento e a liberdade de circulação da informação pela liberação da emissão, conexão generalizada e reconfiguração social (cultural, política, econômica). A internet deveria impedir o obscurantismo, oferecendo possibilidades de emancipação. Mas o que estamos vendo é um outro cenário, ampliado e alimentado pela PDPA.

O Brasil (um dos países mais conectado do mundo) sofre, bem como outras nações, com as fake news, com o descaso para com as instituições, com o orgulho ignorante contra visões fundamentadas na ciência, com o desprezo pelos fatos (pós-verdade), com a manipulação de sentimentos em redes sociais, com o medo psicossomático das diferenças, produzindo violência simbólica e real. Como recuperar o debate político com quem odeia fatos e informação, não se expondo a erros ou contradições, se ele deve ser justamente a arte da circulação da palavra na busca de consensos racionais mínimos? Isso mostra que a conjuntura da PDPA impõe à cultura digital mundial um novo desafio.

Certamente há espaços para movimentos libertários e de resistência. As pessoas estão ficando mais atentas e informadas. Temos o Marco Civil que nos garante a liberdade e a neutralidade da rede e, em breve, uma lei que vai, se tudo der certo, fortalecer a proteção dos dados pessoais. Artistas, intelectuais e ativistas estão diariamente expondo os dilemas e perigos da ação global e expansiva da PDPA. É sintomático que M. Zuckerberg, no F8, último evento da sua empresa, tenha afirmado que “future is private”, pedindo regulação. Há alguns anos ele havia dito: “privacy is dead”. Mas tudo isso é ainda pouco contra a eficiência da PDPA. É preciso criar mecanismos de politização que questionem os seus agenciamentos.

O que fazer? Algumas pistas: quebra do monopólio dos Big Five para produzir diversidade e inovação; educação e informação para a tomada de consciência sobre os processos subterrâneos em jogo; fortalecer o quadro jurídico e o design ético de produtos e processos para proteção da privacidade; pressão de consumidores exigindo mudanças e transparência de empresas e governos… Devemos identificar e criticar os retrocessos sociais, políticos e cognitivos produzidos e alimentados pela expansão global da PDPA. Urge vislumbrarmos novas perspectivas emancipatórias.

* Professor Titular da FACOM/UFBA, Pesquisador 1A do CNPQ.