Resenhas

Resenha do livro “Sentient City”, Parte 4

Sentient city: ubiquitous computing, architecture, and the future of urban space, 2011. Editor: Mark Shepard.

Resenha de Adelino Mont’Alverne

Esta última parte da resenha traz um resumo dos capítulos finais do livro, que visam compreender o espaço urbano como resultado das relações entre a materialidade de suas construções e espaços físicos, a imaterialidade de suas conexões e espaços de fluxos, e a atuação de atores humanos e não-humanos.

 

Boxes Towards Bananas: Spatial Dispersal, Inteligente Cities and Animal Structures

Matthew Fuller discute inicialmente como sistemas de mídia e tecnologias de construção podem influenciar a concentração ou dispersão de pessoas e objetos, como aconteceu, por exemplo, com a TV, que por algumas décadas foi um elemento centralizador dos residentes de um domicílio, e mais recentemente o telefone celular, uma tecnologia que permitiu a dispersão desses residentes.

Com uma referência a Vilém Flusser, o autor também explora como o desenvolvimento de uma tecnologia está ligada ao desenvolvimento de espaços especializados. Ferramentas amplificam as capacidades do homem, por isso passam a requerer espaços determinados para certas atividades. Um exemplo são as fábricas que se instalam em zonas alternativas visando uma estrutura mais adequada aos seus processos. A criação de espaços especializados portanto seria uma consequência da inteligência.

Então que tipos de padrões de concentração e dispersão poderiam aparecer pelo ponto de vista de outras espécies ou atores não-humanos? O autor observa os exemplos de formigas, aranhas e abelhas para afirmar que entre essas espécies o entendimento do espaço está intimamente conectado à forma com que este é habitado, construído e experimentado.

O autor indica então três características essenciais para o desenvolvimento de arquiteturas, design urbano e modelos para a cidade. A primeira característica defende o desenvolvimento de uma abordagem que envolva senciência da cidade incluindo múltiplas formas de inteligência e práticas espaciais. A segunda é a reafirmação de que no desenvolvimento de especialidades que intensificam inteligência, ocorre a espacialização. E a terceira é um questionamento sobre o que podemos extrair da criação de uma cidade que “aprende”, que desenvolve espacialidades capazes de experimentação e adaptação.

Space, Finance and New Technologies

Kazys Varnelis parte da afirmação de que novas tecnologias presentes no ambiente urbano (smartphones, celulares, computação pervasiva, realidade aumentada, redes sem fio, sensores) têm um papel importante no desenvolvimento de um novo regime espacial.

Foram avanços tecnológicos que permitiram a formação, por exemplo, dos sprawls, deslocando para regiões periféricas a produção industrial, centralizando nas cidades globais a produção e o controle financeiros através dos espaços de fluxos. Na dinâmica desses espaços de fluxos os fundos imobiliários tornaram o espaço um instrumento financeiro abstrato que circula por redes digitais globais. O resultado são espacializações que se formam a partir dessa lógica, como cidades e construções vazias determinadas não pelos contextos locais, mas pelo capitalismo global, seus fluxos e modelos automatizados de gestão de investimentos e índices financeiros.

Portanto uma questão a ser discutida em relação ao surgimento de um novo paradigma computacional aplicado aos espaços urbanos é que tipo de ameaça pode representar o contexto da cidade senciente sobre a nossa atuação ativa nas cidades. Ou seja, podemos nos tornar fantasmas, sem uma participação realmente decisiva, nas cidades dominadas pela computação disseminada e eventos ocorridos prioritariamente nos espaços de fluxos?

The Urban Culture of Sentient Cities: From an Internet of Things to a Public Sphere of Things

O argumento principal do artigo de Martijn de Waal é que o debate sobre a cidade senciente deve ser entendido como uma disputa em relação a esfera pública urbana. De um lado a idéia de que tecnologias sencientes contribuem para o esvaziamento dos espaços públicos urbanos. E de outro, a idéia de que essas mesmas tecnologias poderiam possibilitar novas formas de intercâmbio e práticas sociais.

O autor relaciona algumas definições sobre a cidade senciente, mostrando como a variedade de pontos de vista cria diferentes entendimentos sobre esse conceito. No entanto, mais importante do que a aplicação prática de uma nova tecnologia está a discussão sobre o que ela significa para a cultura urbana, que impacto ela pode ter nas nossas identidades e na maneira de viver de forma conjunta nas cidades.

Citando Arendt, Sennet e Habermas, o autor afirma que embora eles tenham diferentes posições, concordam com a idéia de que a sociedade precisa de um lugar em que as diferenças individuais sejam colocadas frente a frente. A esfera pública deveria ser então um contraste com a esfera privada. Mas uma série de fatores contrariam esse ideial, como a privatização, a paroquialização e o individualismo na forma de condomínios, automóveis e mais recentemente os telefones celulares. Esse fechamento para a diversidade da esfera pública pode diminuir nossa capacidade de lidar com outros e a solidariadade necessária para a manutenção de uma sociedade urbana inclusiva.

Por isso, a internet das coisas, a computação ubíqua e pervasiva e as cidades sencientes precisam ser pensadas em torno dessa esfera pública, que pode ter uma perspectiva distópica, na medida em que poderíamos utilizar essas novas tecnologias para filtrar nossos contatos e interações, ou utópica, através, por exemplo, de projetos e iniciativas que buscam reativar a idéia de esfera urbana pública.

Unsettling Topographic Representation

Para Saskia Sassen um registro topográfico não incorpora facilmente a digitalização e a globalização como parte representativa do urbano. Ao mesmo tempo em que devemos considerar a possibilidade de que componentes particulares da topografia de uma cidade podem ser espacializações de dinâmicas e formações globais e digitais. Nesse contexto, a topografia deveria ser pensada como uma construção de componentes materiais e digitais.

A representação topográfica de áreas ricas e pobres, por exemplo, mostraria suas condições físicas, sem destaque para conectividades que poderiam tornar determinadas áreas mais importantes no circuito global. Reestruturações econômicas estão produzindo múltiplas interconexões entre partes da cidade que topograficamente parecem ter pouco a ver umas com as outras.

Para a autora, se a espacialização de componentes globais e regionais se tornar legível, uma análise topográfica mais rica pode ser adicionada ao nosso entendimento dos processos. Por isso a importância da criação de ferramentas de análise que nos permitam incorporar essas interconexões na representação espacial das cidades. Isso também se justifica na medida em que tecnologias digitais podem servir para apoiar iniciativas locais e alianças além dos limites das cidades, importantes para uma época em que a noção de local cada vez mais perde espaço para atores e dinâmicas globais.

Your Mobility for Sale

Para Trebor Scholz, objetos habilitados com inteligência artificial podem permitir que as pessoas façam mais pelos outros ou por si mesmas, mas também podem ser utilizados pelo governo, setores comerciais e outros interessados. Por isso, arquitetos, urbanistas, artistas e o público precisam estar atentos aos riscos da internet das coisas.

Atualmente há uma eficiência cada vez maior da indústria de dados em intensificar a coleta, análise e construção de bases de dados a partir de serviços de internet, redes sociais e o uso de telefones celulares. Ao mesmo tempo em que vantagens são oferecidas por uma série de serviços online não há clareza na forma com que nossos dados são utilizados, por quem e por que razões. E mesmo serviços que podem parecer gratuitos na verdade são custeados pela nossa atenção e as informações produzidas a partir da coleta de dados e da produção de conteúdos, como reviews publicados em sites de comércio eletrônico, vídeos no YouTube e postagens em fóruns de produtos.

Por isso, o autor acredita numa espécie de relação de trabalho entre esses serviços digitais e seus usuários, já que estes últimos produzem riqueza, através da produção de conteúdo e fornecimento de seus dados, mesmo sem participação sobre os lucros financeiros conquistados pelo comércio dessas informações.

A questão central do artigo então é imaginar como essa relação de trabalho, unilateral em relação aos lucros, vai se transformar no contexto da internet das coisas, que poderá refinar a produção de dados, considerando também nosso deslocamento, interação com objetos e lugares. O autor apresenta então alguns pontos a serem avaliadas sobre essa questão: O que nós podemos pedir em troca a essa participação obrigatória? E ao fornecimento de dados pessoais para organizações que visam lucro? Quem vende esses dados, quem compra e por que? Como podemos fazer um opt-out desses sistemas?

Comforts, Crisis and the Rise of DIY Urbanism

No artigo Mimi Zeiger questiona porque não utilizar as ferramentas de computação ubíqua para deslocar a cultura do “Do it Yourself” do ambiente doméstico para o espaço público.

Inicialmente a cultura do DIY tinha uma característica doméstica, através de revistas e manuais que ensinavam, por exemplo, técnicas de eletrônica, agricultura, jardinagem e culinária. Recentemente o grande potencial informativo da web parece ter recuperado o interesse do público geral sobre esses tipos de atividades. Mesmo que celebrado em parte pela sua característica ativista, a nostalgia do DIY se fortalece inicialmente com o computador pessoal, e posteriormente com a integração entre smartphones e tablets e a vida cotidiana.

A proposta de urbanismo DIY trabalha então com a perspectiva do mundo como uma plataforma “hackeável”, que pode ser refeita, remodelada, como uma extensão do tipo de metodologia open source existente no desenvolvimento de software. Por isso, com a capacidade de realizar registros, relacionamentos e antecipações, a cidade senciente pode ser capaz de monitorar o ambiente e nosso comportamento através dela, se tornando um agente ativo na organização da vida cotidiana nos espaços públicos. Mas por outro lado, quanto mais senciente, estará mais aberta ao hacking e as intervenções. E essa mutabilidade pode criar espaços para o surgimento de projetos com características DIY.

Toward the Sentient City: Expecting the Extensible and Transmissible City

No artigo Anne Galloway discute como expectativas de futuro começam a formatar as coisas no presente. Para isso, ela faz uma análise dos projetos apresentados no livro e suas expectativas.

Inicialmente, a autora faz referência ao sociólogo Michel Callon que delineou um quadro de processos sociais e materiais que podem ajudar a entender como a cidade senciente pode emergir e considerar os papéis que as esperanças, expectativas e promessas atuam nesse processo. Considerando que ter expectativa por alguma coisa é procurar por ela no futuro. E que expectativas, mesmo que estejam orientadas para o futuro, também podem gerar fenômenos sociais no presente.

Expectativas podem ser positivas ou negativas, e especialmente no caso de tecno-ciências, são muitas vezes colocadas em termos de futuros utópicos ou distópicos. Aplicações de urban computing e mídia locativa podem ser diferenciadas pelo seu interesse em ativar espaços urbanos e relações sociais. E as percepções de realidade compartilhada e co-presença podem tornar os espaços e as experiências nas cidades sencientes mais afetivas, expressivas e significativas.

Portanto, se mais abordagens críticas e bem-humoradas, a exemplo das utilizadas em projetos apresentados no livro, forem esperadas e prometidas, mais alternativas interessantes ou trajetórias complementares serão oferecidas para nossa atuação. Considerando a urban computing inevitável, devemos ter a expectativa de que a vida cotidiana se torne melhor quanto mais pudermos estender e transmitir os melhores tipos de experiência urbana.

Postscript: Notes on Survival in the Sentient City

Para encerrar o livro, o editor Mark Shepard apresenta questões sobre a idéia de cidade senciente a partir de uma comparação com uma instalação exibida no Instituto de Arte Contemporânea (ICA), em 1963. A instalação “The Living City Survival Kit” trazia uma imagem com uma coleção de artigos cotidianos, manufaturados, descartáveis, portáteis, a serem indicados como essenciais para a vida na cidade. A imagem projetava uma realidade urbana que contrastava com certas ideologias de arquitetura moderna e planejamento urbano características do período pós-guerra no Reino Unido, que consideravam questões sobre gênero, cultura pop e consumismo fora do alcance de seus campos de atuação.

O autor faz uma referência ao conceito de “arqueologia do passado contemporâneo”, de Greg Stevenson, onde objetos comuns projetados para o dia a dia não apenas refletem forças culturais, mas também participam ativamente na formatação das relações sociais e espaciais entre as pessoas e o ambiente.

Pensando no futuro próximo, e não no passado recente, a proposta do autor é imaginar o que formaria um “survival kit” da cidade senciente, levando em conta algumas questões como:

– O que seria “sobreviver” na cidade senciente?
– Quais são as implicações para a nossa privacidade em uma cidade onde nossos dados são armazenados, segmentados e vendidos a grandes corporações?
– Qual será nossa condição de autonomia quando a infra-estrutura urbana se tornar reativa aos nossos movimentos e transações?
– Em quem, ou o que, vamos confiar quando a “responsabilidade” estiver dispersa em um conjunto conectado de atores humanos e não-humanos?
– O que será a “serendipity” quando andar pelas ruas se tornar uma busca em bases de dados de geo-localização?

Leia mais: