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Sobre a internet das coisas: definição e questões de pesquisa

A internet das coisas vem recebendo o tratamento de “the next big thing” (por exemplo, aqui e aqui), tal qual o PC nos anos 80, a internet nos anos 90 e a computação móvel nos anos 00. A promessa se materializa em grandes esforços de desenvolvimento de hardware e software, criação de padrões, leis e códigos de conduta; e se encaixa na ideia de computador do século 21 de Mark Weiser, aquela tecnologia tão profunda que desapareceria no tecido da vida cotidiana.

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A invisibilidade da internet das coisas, assim como a interconexão e sua capacidade de ação, já aparecia em 2009 em um documento do IoT European Research Cluster, grupo de pesquisadores da União Europeia que está entre as primeiras organizações a documentar a emergência deste tipo de tecnologia e a defini-la como uma “infraestrutura global com capacidade de auto-configuração baseada em protocolos de comunicação padronizados e interoperáveis nos quais as ‘coisas’ físicas e virtuais tem identidades, atributos físicos e personalidades virtuais, usam interfaces inteligentes e estão integradas perfeitamente à rede. Na internet das coisas, as coisas devem se tornar participantes ativas nos negócios, processos comunicativos e sociais, nos quais elas são capazes de interagir e se comunicar entre si e com o ambiente trocando dados e informação colhida do ambiente, enquanto reagem automaticamente aos eventos do mundo físico e o influenciam ao desencadear ações com ou sem a intervenção humana direta.

Fica claro que na internet das coisas, os objetos não estão apenas conectados, mas também são identificados, capazes de agir e tendem a se desmanchar no pano de fundo. Em outras palavras, a internet das coisas aponta para uma complexificação das tecnologias de comunicação e da maneira como ‘lemos’ o ambiente e interagimos com ele.

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Nesse sentido, a ilustração feita por Bleecker em seu Manifesto for Networked Objects é emblemática: os pombos que blogam são os descendentes web 2.0 dos canários das minas de carvão. O autor faz referência aos pombos, equipados com conexão a internet, GPS e sensores de poluição atmosférica, que atualizavam informações sobre a qualidade do ar no Google Maps em tempo real. Seus ancestrais, os canários, eram usados por mineiros britânicos até os anos 80 como medidores de gases tóxicos, morrendo ao menor sinal de vazamento e indicando que as condições do ambiente não eram seguras para humanos.

Em cada um dos ‘modelos’ de monitoramento ambiental aparece a entidade híbrida pássaro-sensor, natureza-sociedade. O que nos interessa no exemplo de Bleecker é perceber a diferença entre os pombos e os canários em relação à sua capacidade de ação. Sozinhos, os canários tinham poucos recursos para informar um vazamento de gás e sua ação era extremamente localizada. Conectados em rede, os pombos e seus computadores de bordo geram uma camada de informação e passam a participar do ambiente informacional, usando da mesma linguagem falada por humanos.

A mediação de informação feitas pelos objetos na IoT também pode ser bem ilustrada pela Teoria da Coisa de Sally Applin e Michael Fischer. No paper, os autores apresentam a Coisa, personagem da Família Adams também conhecido como Mãozinha, como objeto conectado que possui as melhores características para a IoT. Na argumentação, os autores mostram como Mãozinha se comunica com a família por sinais ou bilhetes e auxilia nas mais diversas tarefas – entregar cartas, acender cigarros, dar informações, atender o telefone – aparecendo sempre no exato momento em que é solicitada.

São estas capacidades de se comunicar com os humanos, ler o ambiente, perceber suas mudanças e reagir à estas informações que fazem os objetos na internet das coisas tão interessantes. E com a popularização da IoT, cada vez mais sensores, câmeras e etiquetas conectadas vão passar a registrar informação, produzir dados e ampliar sentidos.

Como observar a internet das coisas?

O interesse pelo assunto é crescente, observável pelo aumento de eventos, publicações, notícias e até do número de buscas feitas pelo termo “internet of things”, como registra o Google Trends na imagem abaixo:

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Não só os objetos conectados se diversificam como também os cenários de aplicação se ampliam. As etiquetas de identificação por rádio-frequência (RFID), por exemplo, criadas para funcionar como códigos barras mais precisos para identificação de produtos em estoque, já são utilizadas no Brasil para monitorar veículos através do Sistema Nacional de Identificação Automática de Veículos (SINIAV) e crianças pelo projeto Uniforme Inteligente.

Ainda em 2011, a Internet of Things Initiative, consórcio formando entre empresas e pesquisadores da União Europeia, já havia encontrado aplicações da IoT em cenários bastante distintos. Na análise de mais de 150 aplicações, os pesquisadores identificaram a tecnologia sendo usada nas mais diversas áreas: transportes, casas inteligentes, cidades inteligentes, fábricas inteligentes, cadeias de suprimento, emergências, saúde, estilo de vida, comércio, agricultura, turismo, monitoramento ambiental e da rede de energia elétrica.

Estes objetos conectados saem da condição de atores intermediários e passam a ter capacidades de mediação, se tornam dispositivos, no sentido empregado por Agamben em ‘O que é um Dispositivo?‘. Para o autor, um dispositivo é uma coisa que tenha, de algum modo, a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar gestos, as condutas, as opiniões e os discursos do seres viventes. E o sujeito é o que aparece no encontro entre os dispositivos os seres viventes, como se fosse possível isolar esses dois tipos de atores.

A Teoria Ator-Rede se apresenta, então, como um maneira de observar a ação dos objetos conectados no social, sem escolher entre analisar tecnologia ou sociedade. Concordamos com Latour, para quem é necessário abandonar a dicotomia entre sujeito e objeto ou humano e não-humano, uma vez que ela nos impede de entender tanto as técnicas quanto as sociedades. A afirmação segue a linha dos teóricos dos estudos de construção social das tecnologias dedicados a investigar as circunstâncias nas quais se decide como um novo objeto técnico é criado e desenvolvido.

Abdicar da divisão entre humanos e não humanos é perceber os dispositivos como entidades compostas: eles tem um fim para o qual foram concebidos, mas também são parte de uma longa cadeia de pessoas, produtos, ferramentas, máquinas, dinheiro e etc.

A impossibilidade de estudar a internet das coisas como fenômeno técnico é bastante evidente nos temas de debate que ela levanta. Uma pequena amostra do que foi notícia nos últimos meses aponta para essa diversidade.

Em outubro de 2012, o instituto de pesquisas Gartner, que colocou a internet das coisas entre as principais tendências da tecnologia para este ano. A tendência se confirmou na última edição da tradicional feira Consumer Eletronics Show, realizada em janeiro em Las Vegas. A grande presença de geladeiras, luzes, termostados e até garfos que atendiam pelo sobrenome de inteligentes e se conectam à internet e podiam ser controlados por smartphone chamou atenção da imprensa. Em fevereiro, a Cisco identificou que a tecnologia tem potencial econômico para movimentar 14,4 trilhões de dólares até 2022 e a União Europeia divulgou os resultados de sua consulta pública sobre o tema.

As discussões da esfera pública são um bom exemplo de como os objetos técnicos participam de redes heterogêneas, com atores de todos os tipos e tamanhos, humanos e não-humanos. Para Latour, é neste momento de debate que o ‘social’ aparece. Atores discordam, negociam, sobrepõem argumentos, em um movimento tende à estabilização, sempre provisória.

A questão passa a ser, então, como capturar este momento de debate? Como analisar uma tecnologia em expansão e os tensionamentos que podem levar a sua cristalização? A observação da cobertura jornalística sobre o assunto, as publicações em blogs especializados e conversação em redes sociais pode ajudar a visualizar o fenômeno emergente?

É possível, se entendermos essas publicações e conversas como a esfera pública visível e, graças à digitalização da informação, rastreável. Se devemos seguir os rastros dos atores, observar o que eles falam e o que falam sobre eles é o primeiro passo.