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TAR e Audiovisual : considerações sobre estudos de estética (em games)

 [Screenshot do game Skyrim]

Analisar um filme ou um fragmento é, antes de mais nada, no sentido científico do termo, […] decompô-lo em seus elementos constitutivos. É despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais […] para “desconstruí-lo” e obter um conjunto de elementos distintos […] Uma segunda fase consiste, em seguida, em estabelecer elos entre esses elementos isolados, em compreender como eles se associam e se tornam cúmplices para fazer surgir um todo significante: reconstruir o filme ou o fragmento. (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 2009, p. 15)

 

Ao falarem sobre a (metodologia) análise fílmica, Vanoye e Goliot-Lété (2009) compreendem que não se trata de entender como o filme foi feito, mas como ele, enquanto articulação de vários elementos, apresenta-se aos olhos do observador – no caso o analista, o qual podemos entender como um espectador especializado, atento, de (pretenso) “rigor científico” que, mesmo entendendo que cada filme é interpretado pelas pessoas a partir de distintas culturas e experiências de vida, do contato com diferentes paratextos etc., tenta ater-se ao que é “objetivo”[1].

 

O impulso de decompor uma experiência e entender como os elementos dela se articulam, apesar para pensado pelos autores para a pesquisa sobre estética cinematográfica, nos parece facilmente adaptável (num patamar mais óbvio) à análise de fotografias e de pinturas. Mas também (talvez nos distanciando um pouco da noção original) de outros (quaisquer?) tipos de vivência (estética). A ideia seria perguntar: o que afeta? E em seguida, entender essas partes em separado e articuladamente.

 

Mantendo-nos, porém, no terreno algo próximo do cinema e da fotografia, talvez fosse possível pensar uma relação (grande?) ainda com os jogos eletrônicos. Afinal, numa comparação “externa” (sendo, para determinados parâmetros, algo simplista), não haveria muita diferença entre observar um filme e ver um game sendo jogado. Porém, para além da definição do que seria a “essência” de um e de outro, talvez fosse necessário considerar algumas discussões[2] tanto de cunho filosófico-conceitual (o que é um jogo? Que diferenças e semelhanças há com – outras? – narrativas?)[3], quanto técnicas (como a diferença entre imagens renderizadas em tempo real – e.g.: o jogo do “Shrek” – e vídeos pré-renderizados – o filme de computação gráfica desse personagem, assim como o machinima a partir do jogo dele).

 

Sendo assim, talvez devêssemos fazer algumas observações superficiais sobre certas compreensões do que seria o objeto jogo eletrônico.

 

Um filme[4], seria, para o espectador, “materialmente fechado”. Mesmo interpretando-o de maneira particular ou podendo alterar a própria condição de recepção (estar concentrado ou não, assistir ou não certas partes), ele não pode alterar ou intervir diretamente no desenrolar das ações, na cadeia de eventos mostrados. Num game, ao contrário, caso não haja alguém jogando, interferindo e direcionando, “não há jogo”[5].

 

Além, por materialmente fechado, pressupõe-se que todos os espectadores terão acesso ao mesmo material de base[6]. Num jogo, a não ser que estejamos falando da atualização de um número bastante pequeno de possibilidades, “cada experiência é única”[7].

 

Por outro lado, devemos pensar o papel do pesquisador. Se antes era ele a, de forma “solitária”, ver o filme ou fragmentos e executar a de/composição dos elementos, que postura assumir em se falando de um game?

As opções metodológicas são muitas, assim como diversos são os lugares de observação que elas problematizam. Por exemplo, observar um jogador em ação, ou a gravação das imagens de um jogo (seja gravado especialmente por isso, seja em um dos abundantes walkthrough/gameplays[8] que existem na internet) talvez seja a postura mais semelhante à análise fílmica stricto sensu. Ela, entretanto, nos parece “achatar” tanto a diferença em relação ao objeto (que, do ponto de vista do espectador-analista, continuaria materialmente fechado) quanto sobre sujeito (se o pesquisador só observa sem alterar as ações, ele não é um jogador e não esta falando da experiência do jogador)[9]. Outra opção, que talvez nos pareça mais em diálogo com as especificidades do que é estudado – obviamente, partimos de um local de discussões que prefere pensar nessas características particulares dos games –, seria a do pesquisador assumir-se como jogador, analisando os eventos que ele desencadeia. Aqui, entretanto, por mais que ele escolha por ater-se à “objetividade” (ou não), deveria sempre considerar que o caminho que ele produz é “único”. Outras opções – entrevista com jogadores, coleta de depoimentos em fóruns especializados etc. –, apesar de igualmente válidas, nos parecem se distanciar por demais do que seria uma análise fílmica, afinal, não seria o encarar e “decupar” de uma experiência imagética, mas o reconstruir um objeto partindo de discursos sobre ele (sendo o objeto, então, o próprio discurso?)[10].

 

Postas tais observações, questionamo-nos: em que a TAR pode ajudar aqui?

 

Redes

 

Não pretendo fazer aqui uma revisão da TAR, pontuamos que algumas noções – a saber: a ideia de atores e actância, o princípio da simetria entre humanos e não-humanos, o empirismo, a recusa a explicações, a recortes disciplinares e à ideia de essência individualizante em favor das relações e extensões das redes – nos parecem ideais que deveriam estar no “kit-básico” de qualquer pesquisador (ou qualquer pessoa, podemos dizer, uma vez que essa “visão de mundo” diferenciada resolveria, achamos, uma série de problemas sobre a nossa relação com a realidade).

 

Mas voltando ao foco: quando, ao pensarmos estética, falamos em identificar elementos que se relacionam na formação de um todo, parece-nos haver um paralelismo de cunho ontológico com a noção de ator-rede (redes de atores que são redes) da TAR. À diferença de que, sem “ação” (por exemplo, um conflito) que revele quem modifica/traduz fortemente (mediador) de quem apenas transporta sem alterar (intermediários), falaríamos daqueles que contribuem na conformação do evento/experiência mais aos moldes de um analista fílmico, cuja “desconstrução pode naturalmente ser mais ou menos aprofundada, mais ou menos seletiva segundo os desígnios da análise”. (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 15)

 

Além, pensamos em como, para a TAR, essas redes se des/fazem o tempo todo não sendo fixas e absolutas. Isso visto que o game numa tela uma combinação de elementos (novamente, a depender da complexidade deles) “única” e não generalizável – isso, para nós, não quer dizer em absoluto que em associações de qualquer tipo não possa haver a presença de actantes que se comportam, que executam programas de maneira similar, estabelecendo, assim, relações que podem ser esperadas ou que simplesmente se “repetem” em situações diversas.

 

Soma-se a isso a questão de, ao encarar o próprio pesquisador como actante, problematizando também a bagagem e o aporte teórico dele, a TAR nos parece interessante para pensar a questão de um analista que, mesmo mantendo uma postura de rigor “objetivo” (não embarcando num espiral de subjetividade idiossincrática), deve ser posto também no bojo da análise (uma vez que, no jogo, seria ele a disparar as ações).

 

As contribuições da TAR, ao nosso entendimento, não param por aí. Por atenta empiricamente ao que está agindo no fenômeno, fosse uma forma de superar discussões sobre o que se analisar no jogo (e.g.: narrativa ou das regras?)[11]. Mesmo partindo de um recorte a priori não de elementos, mas de uma rede estética, muitos “tipos” de actantes podem fazer-se presentes. A ideia é “simples”: ao jogar, o que está afetando? As imagens? Somam-se a elas o embate com o algoritmo e regras do jogo? A narrativa (seja a proposta pelos programadores, seja aquela que, talvez cheia de experiências particulares, é construída na mente do jogador), mesmo que seja na temática/design? Durante o jogo há algo que nos faça lembrar de um paratexto específico? Se em um jogo multiplayer online, a presença de outros e questões de sociabilidade ganham contornos de influência estética na experiência? O segredo aqui seria manter-se atento à pluralidade de elementos à medida em que eles se manifestem, “ouvindo” o objeto (o jogo sendo jogado) ao invés de imputar nele o que “potencialmente” pode vir a influenciar.

 

Poderíamos pensar ainda que alguns detalhes de metodologia da TAR (a cartografia de controvérsias[12]) seriam úteis como script para a investigação (descrição dos actantes, tabela cosmos, análise de literatura especializada etc.)? Por fim, uma vez executada uma descrição dos elementos aos moldes da análise fílmica, mas adaptada à lógica de pesquisador-jogador/objeto-jogo, seria interessante combinar outras metodologias complementares, conforme o preceito da objetividade de segundo grau, para tornar mais complexa essa avaliação de elementos?

 

REFERÊNCIAS:

 

VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. 6 ed. Campinas: Papirus, 2009.

 

VENTURINI, Tommaso. Diving in magma: how to explore controversies with actor-network theory. Draft version. 2009. Disponível em: <http://www.tommasoventurini.it/web/uploads/tommaso_venturini/Diving_in_Magma.pdf>. Acesso em 18 jun. 2013

 

VENTURINI, Tommaso. Building on faults: how to represent controversies with digital methods. in.: Public Understanding of Science 21 (7). 2012. 796 – 812. Disponível em: <http://www.medialab.sciences-po.fr/publications/Venturini-Building_on_Faults.pdf>. Acesso em 18 jun. 2013


[1] Venturini (2009; 2012) traz de Latour uma ideia diferente de objetividade, a objetividade de segundo grau. Nela, mesmo com o pesquisador podendo (devendo?) alcançar um ponto de observação mais abrangente, o mais interessante seria multiplicar os pontos de vista e assim, na complementação e no choque, conseguir uma visão mais plural – logo, problematizadora, irredutível – do objeto.

[2] O que Latour chamaria de pré-posições?

[3] Para uma introdução ao assunto, ver FRASCA, Gonzalo. LUDOLOGY MEETS NARRATOLOGY: Similitude and differences between (video)games and narrative. Parnasso#3, Helsinki. 1999. Disponível em: <http://www.ludology.org/articles/ludology.htm>. Acesso em 17 de jun. 2013.

[4] Há diversos “tipos” de cinema. Falamos aqui de um modelo “lumieriano”: uma sala escura na qual é exibida a projeção de uma história para um público coletivo, porém atomizado.

[5] Em tempo: na vitrine de uma loja – salvo exceções – não estamos vendo uma imagem (renderizada) “em tempo real”, mas um vídeo pré-gravado de alguém que, no passado, já jogou. As exceções seriam casos nos quais o game é controlado por uma Inteligência Artificial (pensemos em jogos de competição – de corrida, de futebol, puzzles etc. – no qual vemos “duas telas”. Numa, os “inimigos” seguem a ação enquanto, na outra, o “jogador humano” permanece parado). Poderíamos admitir ainda um jogo single player que, estando ligado, mostrasse o avatar do jogador parado enquanto os inimigos avançam sobre ele. Em tal caso, porém, poderíamos nos questionar sobre a noção de ação, jogo e narrativa presente.

[6] Por mais que existam “versões” diferentes, elas – repetimos: falamos de um modelo industrial “padrão hollywoodiano”, e não de experimentos diversos de cinema expandido, cinema de museu etc. – não são pensadas de forma personalizada para cada indivíduo, e sim para grandes quantidades de público.

[7] Pode haver certa “supervalorização” ou “mito” nesse tipo de afirmação. Mas devemos pensar que, empiricamente, é difícil que dois jogadores jogando o mesmo game lado a lado executem exatamente as mesmas ações e ao mesmo tempo.

[9] Se a dupla face de o objeto ser materialmente alterado/o sujeito poder alterá-lo materialmente é deixada de lado, nos questionaríamos: por que de se optar em analisar um jogo, ao contrário de um filme propriamente dito? O que se analisa é efetivamente um jogo ou um filme?

[10] Por mais que encarar diretamente o objeto também seja um discurso, seria a experiência direta do pesquisador, não um relato mediado pela experiência de outros: se o interesse for no jogo, por que passar por essa mediação ao invés de ir direto a ele?

[11] Novamente, remetemos ao debate narratologia versus ludologia do artigo de Frasca, entre muitos outros trabalhos.

[12] Ver nota de rodapé 1.