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Vigilância, espaço urbano e associações

Durante o ano de 2010, simultaneamente à primeira retomada e estudo do Wi-Fi Salvador, o GPC trabalhou em uma pesquisa sobre o crescente uso das câmeras de segurança no campus de Ondina da Universidade Federal da Bahia. Buscou-se, assim, analisar uma das tecnologias de comunicação e visibilidade utilizadas para ampliar as formas de controle e monitoramento nas sociedades contemporâneas.

Tendo participado desta pesquisa, decidi retomar o tema a partir de um trabalho fotográfico/artístico que desenvolvi no início deste ano para a disciplina “Le banal dans la photographie”, do curso de fotografia da Université Paris 8. O objetivo era retratar, a partir de imagens, a intensa vigilância que sofremos em vias públicas a partir das câmeras de vigilância. Colocar, mais uma vez, o questionamento: nos sentimos mais seguros com a presença das câmeras? Para isso, escolhi Londres. Percorri ruas da cidade, a pé, fotografando imagens relacionadas a vigilância e monitoramento das pessoas em espaços públicos. O resultado do trabalho está logo abaixo (clicar para ampliar):

A escolha por Londres não foi ao acaso. Trata-se de umas das cidades mais vigiadas do mundo – e isso fica claro ao visitá-la. As câmeras que vigiam e monitoram os passos de quem se locomove pelas ruas londrinas estão presentes em qualquer ambiente da cidade, seja por cima ou por baixo da terra, estáticas ou em movimento: ônibus chegam a ter até 16 câmeras (em cada veículo) enquanto a rede de metrô possui mais de 13 mil. Nas ruas, é possível se deparar com avisos de “CCTV in operation” a cada esquina, ao mesmo tempo em que se vê câmeras de todos tipos e formatos presas a paredes, postes, muros, prédios.

Todo esse sistema de vigilância parece dialogar com um híbrido entre uma sociedade disciplinar descrita por Foucault – o sentimento de ser vigiado e toda a questão policial por trás do discurso da surveillance demonstra isso – e a sociedade de controle mostrada por Deleuze. O primeiro tipo, a partir de uma análise de esferas altamente disciplinares e vigiadas, como a escola e a prisão, traz a ideia de um panoptismo (Bentham) que assegura as relações de poder e uma relação distante entre vigilantes e vigiados. O segundo, já traz questões que fogem ao simples confinamento e vigilância, colocando ênfase nos modos de controle envolvendo a tecnologia e o conjunto de códigos aliados a ela. Deleuze, inclusive, diferencia os tipos de sociedades a partir de suas máquinas:

“As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus”. (Deleuze, 1992)

Um estudo da vigilância nas sociedades contemporâneas precisa extrapolar a simples questão do monitoramento de pessoas a partir da separação entre vigilantes e vigiados, mas identificar as formas de visibilidade (obrigatória ou não) a partir de dispositivos e objetos incorporados ao cotidiano da vida urbana. Para isso, duas ideias mostram-se válidas: o conceito de vigilância distribuída e uma análise baseada em uma sociologia das associações. A primeira é um conceito de Fernanda Bruno e se trata “de uma vigilância que tende a tornar-se incorporada a diversos dispositivos, serviços e ambientes que usamos cotidianamente” (BRUNO, 2010, p. 156). Seria uma vigilância, portanto, realizada de modo descentralizado e em diferentes setores, utilizando inclusive dispositivos que não necessariamente foram desenvolvidos para vigilância. A segunda, chamada de Teoria Ator-Rede (TAR) e desenvolvida principalmente por John Law, Michel Callon e Bruno Latour, propõe uma análise baseada em redes de associações entre actantes (atores), renegando uma “purificação dos híbridos”, ou seja, lidando de forma conjunta com o humano e o não-humano, sujeito e objeto.

Voltando ao caso do sistema de vigilância em Londres,  pode-se  tentar destrinchar a rede por trás do grande numero de câmeras exibidas no trabalho fotográfico. Pessoas, objetos e situações são registrados por aparelhos técnicos desenvolvidos para essa finalidade, gerando imagens que são assistidas – em tempo real ou não – por funcionários e gravadas em banco de dados de imagens. Portanto, diversos atores participam desse processo de associação: pessoas, animais e objetos presentes nos espaços públicos; a própria câmera de segurança; a rede (física, estrutural) de cabeamentos e transmissões de dados; o funcionário que assiste aos vídeos; o discurso sobre segurança.  Assim, forma-se uma rede de actantes que faz todo esse sistema de vigilância funcionar.

Todo o sistema de CCTV em Londres indica ter duas funções que podem parecer, à primeira vista, antagônicas. Por um lado, avisar de que as câmeras estão lá, em pleno funcionamento e prontas para fiscalizar os acontecimentos (como nos avisos de “CCTV in operation“).  Demonstra-se que a rede está ali bem construída, com todos os actantes envolvidos e com associações bem formadas, ou ao menos aparentar estar desta forma – algum intermediário ou mediador pode estar ausente na rede, como uma câmera desligada, por exemplo, mas se torna importante aparentar o funcionamento pela presença do objeto câmera. A ideia de vigilância panóptica é incorporada um pouco nesse sentido, deixando as pessoas perceberem que estão sendo vigiadas, mas não saibam por quem, nem em quais locais exatos. Por outro lado, as câmeras de segurança tornam-se banais no cotidiano das grandes cidades, fazendo com que a população continue suas rotinas sem perceber a presença delas. Ou seja, trazer uma estabilização para a rede, deixando as associações bem formadas – incluindo as pessoas, também actantes, que são filmadas e admitem ou ignoram o uso da câmera –, fazendo com que todas as associações e atores tornem-se caixas-pretas.

Esta reflexão a partir do trabalho fotográfico faz justamente com que tais redes sejam destrinchadas. O incômodo e a sensação de insegurança ao observar o grande número de câmeras de vigilância, ao passear por Londres, ou ao analisar a fotografia, faz com que possamos abrir as caixas-pretas que envolvem a questão do uso em massa de circuitos internos de TV em vias urbanas.

 

Referências

BRUNO, Fernanda. Mapas de Crime: vigilância distribuída e participação na cultura contemporânea. In: BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (Org.). Vigilância e Visibilidade: Espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 155-173.
DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972 – 1990. Rio de Janeiro. Ed.34, 1992, p. 219- 226
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis. Ed:29, 2004.
LATOUR, Bruno. (1997). Nous n’avons jamais été modernes: essai d’anthropologie symétrique. Paris: La Découverte.
LATOUR, Bruno. (2005). Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network Theory. Oxford: Oxford University Press.