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Coronavírus, Epidemias e Interfaces

Versão em espanhol: Coronavirus, Epidemias e Interfaces

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Carlos A. Scolari
Professor Titular do Departamento de Comunicação da Universidade Pompeu Fabra, Barcelona.

Há alguns dias uma colega me pediu que escrevesse algo sobre o coronavírus e as interfaces. Não gosto de abusar do termo, porém, como considero que o conceito pode ser útil, decidi compartilhar estas reflexões a partir desta perspectiva de análise.

Em primeiro lugar, devemos partir da definição de /interface/ que propus em Las Leyes de la Interfaz e outros textos: a interface é uma “rede de atores humanos, institucionais e tecnológicos que estão interconectados e mantém diferentes tipos de relações”. Em Como Analizar uma interfaz? comecei a delinear uma série de passos para estudar interfaces de todos os tipos e dimensões, desde uma aula até um partido político. Diante de interfaces muito complexas, com centenas de atores (por exemplo, um sistema educacional ou gastronômico), o melhor é começar pelos níveis “inferiores” (a aula como interface, a cozinha como interface) para ir “escalando” até chegar a um grande ecossistema sociotecnológico. Como escrevi em Las Leyes de la Interfaz com um olhar nos modelos fractais, o conteúdo de uma interface é sempre outra interface.

Esta ideia de /interface/ como “rede de atores” será retomada ao final desta publicação para avançar em um possível “programa de pesquisa” sobre a crise do coronavírus. Entretanto, antes de chegar neste ponto, gostaria de repassar alguns autores, conceitos e textos que podem nos ajudar a tornar inteligíveis situações até certo ponto inéditas e carregadas de incertezas. A sua maneira, a teoria da interface é também uma interface na qual diferentes atores teóricos interagem e mantêm relações intertextuais de grande utilidade para compreender o que está acontecendo.

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Assemblage

Por trás de Las leyes de la Interfaz há uma densa rede de teorias, autores, textos e modelos que dialogam e, a sua maneira, também conformam uma “interface epistemológica” sobre a qual se desdobra a teoria da interface. Alguns desses interlocutores teóricos são muito evidentes – por exemplo a Actor-Network Theory de Bruno Latour, John Law e Michel Callon – e outros um pouco menos. O conceito de /assemblage/, apresentado por Gilles Deleuze e Félix Guattari em A Thousand Plateaus (1980) e trabalhado em profundidade pelo filósofo Manuel DeLanda em dois livros fundamentais – A New Philosophy of Society (2006) e Assemblage Theory (2016) -, estabelece um diálogo direto com minha ideia de /interface/. Segundo a Wikipedia:

Assemblage theory provides a bottom-up framework for analyzing social complexity by emphasizing fluidity, exchangeability, and multiple functionalities through entities and their connectivity. Assemblage theory asserts that, within a body, the relationships of component parts are not stable and fixed; rather, they can be displaced and replaced within and among other bodies, thus approaching systems through relations of exteriority.

Em A New Philosophy of Society (2006), DeLanda propõe um olhar materialista fundamentado na ideia de que a análise de grandes corpos sociais deve partir do estudo de seus componentes individuais. Segundo De Landa:

a wide range of social entities, from persons to nation-states, will be treated as assemblages constructed through very specific historical processes, processes in which language plays an important but not a constitutive role. A theory of assemblages, and of the processes that create and stabilize their historical identity, was created by the philosopher Gilles Deleuze in the last decades of the twentieth century. This theory was meant to apply to a wide variety of wholes constructed from heterogeneous parts. Entities ranging from atoms and molecules to biological organisms, species and ecosystems may be usefully treated as assemblages and therefore as entities that are products of historical processes.

De acordo com DeLanda, a Assemblage Theory pode ser também aplicada a entidades sociais, ainda que na realidade este olhar teórico atravesse e se localize para além da oposição entre natureza-cultura (da mesma maneira que a ANT utiliza o conceito de /ator/ para nomear tanto entidades humanas como não humanas). Por outro lado, o modelo que DeLanda tem em mente é escalável e pode passar do micro para o macro:

Assemblages, being wholes whose properties emerge from the interactions between parts, can be used to model any of these intermediate entities: interpersonal networks and institutional organizations are assemblages of people; social justice movements are assemblages of several networked communities; central governments are assemblages of several organizations; cities are assemblages of people, networks.

Como se pode ver, há muitas afinidades entre a ANT, a teoria das interfaces e a Assemblage Theory, desde a superação da oposição entre o humano/cultural e não-humano/natural até a escalabilidade do modelo de análise, que pode ser aplicado a diferentes “níveis” dos fenômenos estudados.

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Antropoceno

Há uns 8.000 – 10.000 anos, o Homo sapiens se tornou sedentário, começou a domesticar algumas espécies de animais e formou os primeiros núcleos urbanos. No clássico Guns, Germs and Steel (1998), Jared Diamond explica como a domesticação de animais forneceu aos euroasiáticos resistências imunológicas a certas doenças. Ao viver em núcleos urbanos onde o contágio era fácil, as epidemias proliferaram e a seleção natural fez seu trabalho: como não havia hospitais ou vacinas, sobreviveram apenas os Homo sapiens que conseguiram desenvolver resistências aos perigosos micro-organismos.

Atualmente, quase 70% da população mundial vive em cidades e a porcentagem não para de crescer:

Todos este núcleos urbanos estão interconectados por uma rede de meios de transporte que os transformam, de fato, em uma grande cidade em escala planetária:

Vírus, germes e outros micro-organismos também formam parte deste ecossistema global. De certa forma, com o coronavírus vê-se a repetição, em escala global, de um fenômeno que aconteceu há 10.000 anos com a domesticação e o nascimento dos primeiros núcleos euroasiáticos. É como se vivêssemos em uma grande metrópole planetária onde os memes e genes circulam em toda velocidade e as interações, não apenas entre Homo sapiens mas também com outras espécies, têm aumentado de maneira exponencial.

Epidemic Assemblage

Nick J. Fox, sociólogo da University of Huddersfield e University of Sheffield, acaba de publicar um breve artigo intitulado “Money, markets and trade caused coronavirus pandemic”. Nesse texto Fox aponta ao nível macro e traça um mapa onde contágios virais se cruzam com os mercados globais e núcleos urbanos:

Once the part this environment plays is acknowledged, it becomes clear that the ultimate cause of the epidemic is not the coronavirus particle, but the concentrated centres of population, the global market and the contemporary system of international trade within which humans across the planet now live out our lives. Covid-19 is just one part of a broad assemblage of human and non-human elements that have established the conditions for diseases to pass rapidly throughout our species.

Não é difícil concordar com Fox quando ele defende que a rápida difusão do coronavírus

derives from the nature of the marketised interactions between human and non-human. From the virus’s initial shift from animal to human host through to its rapid spread within communities and within physical entities such as prisons and cruise ships globalised business and trade (and associated movements of goods and humans across borders) have enhanced Covid-19’s capacity to infect large numbers.

A convergência entre um sistema econômico global, com seus fluxos monetários, intercâmbios e mercados transnacionais, e a concentração da população mundial em núcleos urbanos tem gerado as condições para a rápida difusão e capacidade de contágio da COVID-19. Neste contexto, Fox propõe uma análise do que denomina /epidemic assemblage/ e retoma o relato fundamental desta pandemia:

Somewhere in China in 2019, it is believed that the ‘patient zero’ event took place, probably in a marketplace for live animals. In this assemblage, humans, animals and Covid-19 mingled, but importantly, this took place in a market environment. Traders and customers from disparate locations converge on such locations, which have formed the basis for commerce for millennia. What is different today is that potential hosts are linked into a far wider geographic assemblage than in previous eras.

A partir deste intercâmbio original, a difusão do vírus passou a um cenário global em poucos dias graças ao deslocamento de centenas de milhares de pessoas que viajavam por motivos profissionais ou pessoais (“Market economies depend upon such movements, and business operates in a global marketplace”).

Em um artigo chamado “A construção do novo coronavírus”, André Lemos, professor da Universidade Federal da Bahia (Brasil), reforça o conceito de /epidemic assemblage/ mas critica algumas limitações da análise de Fox:

O texto de Fox deixa de fora questões centrais para a compreensão da gênese do vírus e da epidemia: a sua construção científica, política e comunicacional. A partir de uma análise neomaterialista, podemos dizer que o vírus está longe de ser apenas uma entidade biológica isolada, provocando doenças nos humanos e se difundindo na velocidade das trocas mundiais. Antes de ser um objeto natural, ele é resultado de entrelaçamentos de múltiplas instâncias e agências. Ele é “natureculture” (Haraway). O vírus e sua epidemia formam um “dispositivo” (Foucault), um “fenômeno” (arranjos agenciais que geram as entidades – Barad), um virus assemblage. Como seria possível isolar o vírus do humano, ou da cultura?

Em outras palavras, Lemos está nos lembrando que no epidemic assemblage também deve-se incluir a midiatização do coronavírus:

As mídias produzem o fenômeno pela força das narrativas construídas em torno de sua origem, dos perigos da doença, das formas de tratamento, da busca por vacinas e das comparações com outras epidemias, como a gripe espanhola ou a peste bubônica.

Resumindo, segundo Lemos:

A rede apontada por Fox precisa ser ampliada: o vírus assemblage é produzido nos fluxos da globalização e na interrelação entre humanos e animais, mas também nos laboratórios de pesquisa que dão nome e instituem a sua ontologia, nas políticas públicas que produzem ações concretas, na guerra das imagens e discursos escolhidos e veiculados nas mídias, na escolha por formas de prevenção e tratamento médico, na definição epidemiológica sobre a situação… Consequentemente, o vírus assemblage deve ser identificado não pelo isolamento, mas pela revelação de seus entrelaçamentos que o constituem como um fenômeno coletivo (não há efeito colateral). Ele deve ser desempacotado de forma extensiva, permitindo ações efetivas e conscientes de sua construção.

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Coronavírus e interfaces

Se a interface é uma “rede de atores humanos, institucionais e tecnológicos que estão interconectados e mantém diferentes tipos de relações”, podemos dizer que o COVID-19 é um ator, talvez o menor, porém, por isso, o mais disruptivo, de uma complexa trama sociotecnológica que envolve médicos, pacientes, doentes, hospitais, laboratórios, estados, parlamentos, aeroportos, polícias, políticos, microscópios, máscaras e aplicativos móveis desenhados para identificar possíveis contaminados ao nosso redor. Analisar uma rede que envolve tantos atores é uma tarefa gigante e, se algum dia for possível, será necessário contar com um software específico para mapear tantos atores, relações e processos.

Perante esta situação, teríamos que começar por um estudo das interfaces de um nível “inferior” (por exemplo, um hospital percebido enquanto interface, incluindo o mercado onde aconteceu o primeiro contágio) para ir “escalando” até chegar ao grande ecossistema sociotecnológico. Como bem coloca Nick Fox, os atores econômicos e seus fluxos de intercâmbio não podem ser deixados de lado na análise, da mesma maneira que André Lemos nos lembra que os atores midiáticos, sejam tecnológicos, humanos, institucionais, são parte fundamental desta interface. Para compreender uma interface, ou um assemblage, como diz Lemos, é necessária uma “revelação de seus entrelaçamentos”.

Sim, como escrevi em Las Leyes de la Interfaz, os atores humanos coevoluem com os tecnológicos, as mudanças que estamos vivendo nesses dias, tanto a nível de proteção pessoal (uso de máscaras, líquidos desinfetantes para lavar as mãos etc.) quanto coletivos (aplicativos móveis para controlar quem respeita a quarentena ou para detectar possíveis contaminados em nosso entorno, controles de temperatura em aeroportos etc.) deixarão suas pegadas em nossos comportamentos individuais e grupais. Assim como depois do 11S, a vida cotidiana de milhões de pessoas em todo o mundo mudará de maneira irreversível.

Outra dimensão importante a partir da perspectiva da teoria das interfaces é o conflito que nasce quando as estratégias dos designers enfrentam as táticas dos usuários. Um exemplo: quando o Estado espanhol exige confinamento, alguns cidadão saem de férias à montanha ou à praia. Esta distância entre os “designers” (neste caso os governantes que produzem decretos) e os “usuários” (os cidadãos que os interpretam a sua maneira) é muito similar à dinâmica entre autor-texto-leitor, analisada pela semiótica e as teorias hermenêuticas dos últimos 50 anos. Também os decretos, diria Umberto Eco, podem ser sobreinterpretados ou “usados” pelos leitores-cidadãos. Outro exemplo: os estudantes chineses que “derrubam” o aplicativo Dingtalk – que administra a educação à distância durante a quarentena – para não ter que fazer a tarefa. Este tipo de fricções entre designers-usuários é tão velha como o Homo sapiens e é um dos motores da evolução sociotecnológica.

O que está acontecendo nestas semanas será objeto de estudo pelas próximas décadas. Para além das aproximações de cada disciplina, é evidente que apenas os enfoques interdisciplinares poderão dar certa inteligibilidade a esta crise global. Como escreve Rolando García,

Quando afirmamos que a pesquisa interdisciplinar é o tipo de estudo exigido por um sistema complexo, isso de forma alguma exclui estudos parciais de alguns de seus elementos ou de algumas de suas funções. Nenhuma análise de tais sistemas pode prescindir de estudos especializados. No entanto, por mais ricos e necessários que possam ser esses estudos, a simples soma deles raramente pode, por si só, conduzir a uma interpretação dos processos que determinam o funcionamento do sistema como tal, ou seja, como uma totalidade organizada. Um estudo integrado de um sistema complexo, no qual está em risco a operação de todo o sistema, só pode ser trabalho de uma equipe com estruturas epistêmicas, conceituais e metodológicas compartilhadas.

Tempo duríssimos vêm pela frente. Em breve estaremos em algo parecido a um período pós-guerra no qual as velhas interfaces reclamarão e, em muitos casos, ruirão. Novas assemblages de atores nascerão, sustentados em novas narrativas e com a urgência de gerir uma série de questões – como a emergência climática – que nestes dias tem desaparecido de nossas conversas, mas que seguem aí, como o dinossauro de Monterroso.

Nota: Obrigado a Marcos Palacios pelo link dos textos de A. Lemos e N. Fox.

Bônus tracks
⦁ Versão online (livre acesso) de ⦁ A New Philosophy of Society de Manuel DeLanda (2006)
⦁ García, R. (2011). ⦁ Interdisciplinariedad y sistemas complejos. Revista Latinoamericana de Metodología de las Ciencias Sociales, 1, 1.
⦁ Scolari, Carlos A. (2020). ⦁ Guerra Mundial V, Perfil (06.02.2020).
⦁ Scolari, Carlos A. (2020). ⦁ La nueva tecnoguerra fría: novedades del frente europeo, Perfil (28.02.2020).
Tradução: Sebastián Piracés-Ugarte, Supervisão: André Lemos