Ensaios / In Vitro: Dossiê Covid-19

O Silêncio: Pandemia, Blackout e Lockdown

André Lemos
Professor Titular da Facom/UFBA, Pesquisador 1A do CNPq

O novo livro do escritor americano Don DeLillo, The Silence, acaba de ser publicado nos Estados Unidos. Para quem não conhece, DeLillo nasceu em Nova York, tem 84 anos e é um dos escritores mais importantes dos Estados Unidos e, certamente, um dos maiores da atual literatura mundial. Escreveu obras primas, traduzidas para o português, tais como Ruído Branco, Submundo, Um corpo que Cai, Cosmópolis, Zero K, sempre colocando em discussão o terrorismo, a guerra, as tecnologias, as mídias, a arte, tencionando a dimensão do presente. O livro ainda não foi traduzido para o português brasileiro, mas isso não deve tardar.

O Silêncio da Tecnologia

O Silêncio é um romance curto, com pouco mais de 100 páginas, escrito com precisão e rigor no qual não há palavras em excesso. O casal Jim e Tessa está voando de Paris com destino a Newark. Eles vão se encontrar com os amigos Max e Diane em Manhattan para assistir à final do Superbowl, em 2022. Ainda no voo, Jim relata em voz alta para Tessa os dados da viagem (tempo até o destino, tempo de voo, altitude, temperatura externa…), como que atestando a realidade lá fora pelas informações vivas na tela. Tessa, poetisa, escreve no seu computador fingindo prestar atenção ao que ele diz.

Em um determinado momento há problemas no voo, as informações desaparecem das telas e o avião é obrigado a fazer uma aterrissagem forçada. Jim tem um corte na cabeça e necessita de atendimento médico, sendo encaminhado para um hospital. Lá, enquanto esperam a liberação, fazem sexo em um cubículo e, ao retornarem para a recepção, percebem que as telas de informação do hospital, os celulares, os laptops, as redes Wi-Fi pararam de funcionar. Tessa, assustada, diz para Jim:

I can tell you this. Whatever is going on, it has crushed our technology. The word itself seems outdated to me, lost in space. Where is the leap of authority to our secure devices, our encryption capacities, our tweets, trolls and bots? Is everything in the datasphere subject to distortion and theft? And do we simply have to sit here and mourn our fate?

Max e Diane, no apartamento em Manhattan, recebem Martin, ex-aluno de Diane e professor de física. Eles esperam, sem saber o motivo, o atrasado casal Jim e Tessa. O jogo está prestes a começar, tudo preparado quando o blackout os atinge. Sem saber o que está acontecendo, e na expectativa da chegada dos amigos e da normalização da situação, Max, Diane e Martin enfrentam, com tédio, a espera. Eles conversam sobre física, futebol e lançam hipóteses sobre as causas dessa pane generalizada: problema nas centrais elétricas, terceira guerra mundial, terrorismo, ataque alienígena? Diz o narrador sobre Martin:

Seemingly all screens have emptied out, everywhere. What remains for us to see, hear, feel? Do a select number of people have a form of phone implanted in their bodies? A serious question, the young man says. Is this a protection against the global silence that marks our hours, minutes and seconds? Who are such people? How do they access the subcutaneous calls? Is there a body-code, a sort of second heartbeat that conveys a local warning?

Max, catatônico, olha para a tela de TV morta, pensando no jogo, se ele já estaria começando… “Max is not listening. He understands nothing. He sits in front of the TV set with his hands folded behind his neck, elbows jutting. Then he stares into the blank screen”. Impaciente, ele decide sair para dar uma volta pelas ruas do bairro e fica impressionado com as pessoas perdidas sem a conexão do celular. Jim e Tessa chegam, comem, trocam algumas palavras e vão para o quarto dormir, exaustos. O silêncio e a apatia imperam no apartamento. Nenhum sinal das comunicações e da volta da energia. Nem a pane no avião, nem o blackout são explicados na história!

Diane e Martin flertam na cozinha, conversando sobre Einstein, teoria de relatividade, tempo e guerra mundial. Martin faz referência à suposta frase do físico alemão sobre a quarta guerra mundial (que seria com pedras e paus). Se o blackout foi causado por uma terceira guerra mundial, é mesmo o fim da tecnologia e, certamente, a quarta vai nos levar à idade das cavernas. Diz ele:

I need a shave. That’s what else. I need to look into a mirror and remind myself that it’s time for a shave. But if I leave this living room and walk into the lavatory, will I ever come back? Face in the mirror. Granular surveillance. Tech-dome. Two-factor verification. Gateway tracking. I can’t help myself. The terms surround me. I try to think sometimes in a prehistoric context. A flagstone image, a cave drawing. All these grainy shreds of our long human memory.

Blackout e Lockdown na Pandemia da COVID-19

O livro foi escrito antes da pandemia e se passa em 2022, quando já, na melhor das hipóteses, estaremos em uma era pós-pandêmica. Há uma estranha coincidência entre o livro e a atualidade, como em um jogo de espelhos. Com a atual pandemia, estamos em isolamento social. No entanto, o funcionamento das tecnologias “lá fora” nos permite socializar, trabalhar, estudar, se entreter. Sem o blackout externo e no lockdown, tudo segue o seu curso, mesmo que não saibamos exatamente como será, de fato, o futuro. Com a pandemia, no isolamento e na indefinição, temos medo. Mas estar tudo funcionando nos nossos sistemas eletrônicos de comunicação é um alento, um sinal de que o mundo ainda não acabou. Estamos numa crise, mas não em uma catástrofe, ainda!

Já o 2022 de DeLillo é o da catástrofe, do fim da comunicação. As cidades não foram atingidas por nenhuma pandemia, as pessoas podem circular livremente… Tudo está normal, no velho normal. No entanto, o colapso generalizado da infraestrutura, das mídias de massa e das tecnologias de comunicação digitais apaga o mundo lá fora. Não há mais informações nas telas no hospital, não há mais televisão, as pessoas não olham mais para os celulares nas ruas, não há mais redes sociais, os laptops não funcionam, a internet desapareceu. Como poderá Jim, agora, navegar pelas informações, como fazia na tela em frente a sua poltrona no avião, certificando-se de que a realidade lá fora ainda faz sentido?

Como uma pandemia às avessas, tudo é isolamento e silêncio, representado na narrativa pela incomunicabilidade dos amigos no apartamento em Manhattan. Para DeLillo, o fim da tecnologia é o fim da civilização. Diferente do lockdown da pandemia, é o blackout digital que nos joga na incomunicabilidade, no isolamento, no silêncio. Nos transformamos em pontos movendo-se sem sentido, desnorteados, como as pessoas na rua sem a “bússola” do smartphone.

A principal lição dessa pandemia é que só existimos coletivamente, que precisamos passar por outros para existir (objetos, superfícies, humanos) (BUTLER, 2020; GRUSIN, 2020; LEMOS, 2020). No isolamento forçado pelo SARS-COV-2 podemos ver mais claramente a nossa dependência aos outros humanos e não humanos e, por estarmos isolados, valorizamos e sentimos fortemente a necessidade do contato, da comunicação, da conexão. DeLillo fala, sem saber, da nossa realidade pandêmica. Mas na sua narrativa, estamos tão dependentes desses artefatos que não saberemos mais romper a solidão sem eles.

Imagem invertida. Na pandemia estamos trancados, isolados, mas o mundo continua lá fora. Em 2022 d’O Silêncio estamos livres, mas é a estrutura lá fora que entrou em colapso. DeLillo coloca em evidência não o vírus biológico, mas o blackout que gera a desconexão (teria sido um vírus de computador a causa do apagão?). Para sobreviver precisamos valorizar as conexões, romper o silêncio, acolher outros (humanos, objetos, superfícies, seres da Terra). Em uma das últimas frases do livro, como se quisesse nos mostrar que a liberdade é coletiva e que só vivemos entrelaçados (BARAD, 2007), Martin, o físico adorador de Einstein, diz: “The world is everything, the individual nothing. Do we all understand that?”.

Referências

BARAD, Karen. 2007. Meeting the Universe Halfway. Quantum Physics and the Entanglement of Matter and Meaning. Durham and London: Duke University Press.

BUTLER, J. Traços humanos nas superfícies das coisas. In Pandemia crítica, N-1 Edições, São Paulo, 2020, disponível em https://www.n-1edicoes.org/textos/75

DeLILLO, D. The Silence. New York: Charles Scribner’s Sons, 2020.

GRUSIN, R. Mediação Radical, máscaras da Covid e coletividades revolucionárias. In Dossiê InVitro, Salvador: Lab404/UFBA, 2020. Disponível em http://www.lab404.ufba.br/mediacao-radical-mascaras-da-covid-e-coletividades-revolucionarias/

LEMOS, A. Covid-19, liberdade e cidadão ideal. In Dossiê InVitro, Salvador: Lab404/UFBA, 2020. Disponível em http://www.lab404.ufba.br/covid-19-liberdade-e-cidadao-ideal/